sábado, 9 de agosto de 2014

O bêbado e os equilibristas


Não era um bêbado sentado num restaurante. Era um bêbado sentado num restaurante ao nosso lado, inserido nos nossos cosmos, na nossa sensibilidade de enxergar o mundo. Ele era o porta-voz do nosso silêncio inquieto, da nossa conversa sem-jeito, dos nossos olhares pausados e ainda um tanto tímidos.

Com um copo na mão, ele se anunciou. Os olhos dele transbordavam poesia, o que saía com muita facilidade pela língua embolada em álcool. Poesia não se aguenta. Escorre.

“Vou lhes recitar um poema” – ele disse enquanto ríamos daquilo que parecia ser uma cena de filme. E ele continuou:

“A alma, em seu espaço físico, jamais se limita. O encontro se faz aos arranhões, sob a percepção de uma afinidade patente. A alma é esconderijo das sensibilidades, das mãos que tateiam, dos corações que pulsam, dos olhos que veem muito além. Eu sugiro, pois, que se seu desejo é possuir, agarre nas paredes da alma. Arranhe, unhe, se apegue, agrida. Marque com o seu encanto, ajeitando as quinas irregulares. As almas caminham de mãos dadas porque, ao contrário dos nossos preconceitos, elas se identificam apesar de. E acima de”.

O riso agora foi suspiroso, desatando nossa estranheza e aceitando o convite para deixá-lo vir mais perto, jogando nas nossas caras todas as verdades que ainda não aceitávamos:

“Vocês têm a chance de fazer isso dar certo. É a vez de vocês. Não se preocupem com os que vieram antes, eles já puderam escolher. Arrisquem, se permitam, deixem doer se tiver que doer, mas deixem voar se o peso é leve demais”.

Agora parecia que os nós estavam desatados. Ou, ainda, que havia mais de mim, mais de você (mais de nós). E as percepções, ora fugidias e escondidas, agora se faziam evidentes: era o encontro, era a vontade, era a cumplicidade de uma vida inteira que desembocou ali, naquele lugar.

A noite daquele dia nunca acabou. Estamos lá ainda, recebendo versos diários e rememorando com clareza a cena que parece ter se materializado. Afinal, quem eram os bêbados daquela noite? E onde foi parar o resto do mundo naquele instante?

E que não haja resposta. Porque não nos interessa saber. 



3 comentários:

Aline Azevedo disse...

Filipe,

Eu não sei mais quantas vezes já lhe disse isto, mas vim aqui hoje com lágrimas nos olhos e aperto no peito. Procurar nas suas palavras algum tipo de refúgio. Consolo? Talvez entendimento.
Chorei. Ainda choro. Mas me sinto mais leve. Ser de alma, assim, por inteiro, é difícil. Dói. Mas como o sábio bêbado disse, "deixem doer se tiver que doer". Crescer dói. Aprender é um processo lento e doloroso. Mas a gente o faz pra caber naquele abraço. A gente abre mão das nossas vaidades.
Não vou me prolongar mais, só: obrigada.
Por hoje. Por sempre.
Um beijo,
Aline.

Ana EmíliaYamashita disse...

"A alma é esconderijo das sensibilidades" deves ter uma alma imensa para caber tanta sensibilidade.

Rebeca Postigo disse...

Como é gostoso te ler, rapaz!!!
Sempre com textos doces e de alguma forma, inspiradores...
Sabe, nem sempre as pessoas se importam, umas com as outras, principalmente agora...
Mas, o fato é que há seres humanos muito complexos e interessantes por aí...

Bjo, bjo!!!

P.S.: Meu blog mudou, agora você me encontra no http://mesmiceseepifanias.blogspot.com.br