Ela chegou, sentou no balcão e me
pediu um drinque. Devia ter seus vinte e poucos anos, cabelos entre o liso e o
cacheado, olhos expressivos, boca inquieta, sorriso despudorado. Já havia
notado que ela sempre chegava sozinha, bebia dois, três copos de qualquer coisa e ia embora. Não falava com ninguém, não dava bola pros rapazes que
arrastavam asa, não flertava.
Naquele dia ela me notou, elogiou
minha camiseta, falou que eu tinha pinta de artista de filme de quinta
categoria. Riu da própria piada. Mexeu o gelo com os dedos, todos eles, e
chupou um a um, me encarando nos olhos. Suei. Ela perguntou se eu já tinha ido
em algum lugar perigoso, se eu gostava do perigo. Eu falei que não, geralmente.
Que eu preferia lugares tranquilos. Ela gargalhou e perguntou se eu estava
ficando louco.
“Gosta de lugares tranquilos e
trabalha num bar como este? Tá de sacanagem”.
Eu pensei em explicar que nem
sempre eu estava em lugres que gostaria de estar, mas desisti. Ela parecia
interessada em me tragar feito um cigarro, fazer de mim fumaça e me tornar
cinza. Os olhos dela, aqueles olhos de analisar fotografia, me causavam
distúrbio. Meu coração já engatinhava rumo à garganta. Perguntei se ela estava
acompanhada. Ela suspirou.
Arrebitou-se toda por cima do
balcão, debruçou-se sobre os cotovelos, e me encarou firme, com olhos
alcóolicos, os mais sóbrios que já vi. De repente, disparou alguns versos, como
se quisesse me fazer engolir uma comida: “E
eu quero te servir a poesia numa concha azul do mar ou numa cesta de flores do
campo. Talvez tu possas entender o meu amor. Mas se isso não acontecer, não
importa. Já está declarado e estampado nas linhas e entrelinhas deste pequeno
poema, o verso; o tão famoso e inesperado verso que te deixará pasmo, surpreso,
perplexo. Eu te amo, perdoa-me, eu te amo”.
Já não sentia mais meus pés, meus
braços, minha nuca. Eu estava inteiro nela, dentro dela. Ela me puxou pela
camiseta – a mesma que há pouco havia elogiado – e me beijou com quinhentos e
cinquenta volts. A descarga elétrica foi ouvida em forma de um estalar arrítmico
no céu da boca. Foi preciso uma fração de tempo para eu entender o que havia
acontecido, pra retomar o controle das minhas mãos e puxá-la pra mais perto,
fazendo-a sentir meu coração ensandecido que não queria saber de amor
verdadeiro.
Ela se recompôs. Ajeitou os
cabelos, amarrando-os em um coque malfeito. Sorriu, pegou a jaqueta que havia
encostado na cadeira ao lado e foi embora. Sem olhar pra trás.
[os versos citados são de Cora Coralina]
3 comentários:
amei!!!!
A vida por vezes nos prega peças...
Talvez é a palavra mais cruel que existe no mundo...
Adorei seu conto!!!
Como sempre me tirou o fôlego...
Saudades daqui!!!
Bjo, bjo!!!
"Eu pensei em explicar que nem sempre eu estava em lugres que gostaria de estar, mas desisti."
Acontece aqui também.
Lindo texto, Filipe, como de costume.
Um abraço.
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