Era noite de
concerto e o salão nobre estava repleto de admiradores de Chopin. O pianista
dedilhava o piano como quem faz uma massagem em uma flor. De longe, eu via
Soraya que se mantinha boquiaberta, olhando estatelada pro moço que incorporava
as notas, os sons, os ritmos e transmitia a música a quem quisesse senti-la.
Soraya, que há
dois meses atrás odiava música clássica. Que se perdia nas mesas de bares,
buscando um carinho entre as pernas. Moça dos palavrões, da saia justa
provocante, dos cabelos em cachos volumosos que, vez ou outra, faziam volta em
seu indicador. Conheci-a na minha sala de estar, quando cheguei em casa de
madrugada, com a certeza de que a encontraria vazia. Soraya estava nua, tocando
meu piano como quem esfrangalha uma galinha.
Como ela não
olhou para mim, pigarreei uma. Duas. Três vezes. Ela parou o som arrítmico que
produzia, crente de que aquilo era mesmo arte.
- Oi. – eu disse
em tom de desaprovação.
- Oh! – ela
exclamou, tirando os dedos do teclado, nem se lembrando da sua nudez. – Eu
estava apenas brincando, sabe? Gosto do som disso, das coisinhas pretas e
brancas. Tem um som bacana. Será que um dia eu aprendo a tocar? Você toca?
- Quem é você?
- Oh! – ela
exclamou de novo, como quem se desculpa por uma falta. – Eu sou namorada do
Sérgio. Prazer. Estou nua porque não sabia que teria mais alguém na casa,
espero que não se importe. Quanto ao piano, me perdoa.
- Onde está o
Sérgio?
- Está dormindo.
Esperei ele dormir para poder vir tocar. Quer dizer, eu não toco, sabe? Mas eu
gostaria muito. Muito mesmo. Você toca?
- Esse piano era
do nosso pai, ninguém toca aqui em casa. Olha , eu preciso dormir, me dê licença.
- Sérgio disse
que você toca. Tão linda essas coisinhas pretas e brancas, não acha? Parece um
monte de zebrinha.
- Se chamam teclas. E zebra não é uma comparação das melhores. Presumo que você esteja bêbada e que não seja namorada do Sérgio.
- Tá, nós nos conhecemos hoje. Mas eu gostei muito dele, viu? Muito mesmo. Será que eu posso voltar outras vezes pra poder tocar as zebrinhas? Eu amei tanto isso: o som, sabe?
- Se chamam teclas. E zebra não é uma comparação das melhores. Presumo que você esteja bêbada e que não seja namorada do Sérgio.
- Tá, nós nos conhecemos hoje. Mas eu gostei muito dele, viu? Muito mesmo. Será que eu posso voltar outras vezes pra poder tocar as zebrinhas? Eu amei tanto isso: o som, sabe?
- O piano foi
vendido. Virão buscá-lo amanhã. – eu menti, imaginando aquela mulher nua na
minha casa, toda noite, batucando meu piano.
- Oh! – era
mesmo a moça das exclamações. Estava visivelmente chateada. – É muito caro? Eu
poderia pagar?
- Mutíssimo
caro.
- Mais de um
milhão?
- Mais de dois.
- (...) – ela
disse um palavrão.
- Eu vou deitar,
se me permite. – avisei.
- Você conhece
alguém que toca? Eu amaria escutar alguém tocar. Eu acho que sou tão boba, às
vezes. – ela riu. E eu achei ela muito boba, todas as vezes. – Imagina só,
gostar de piano, devo ser muito boba mesmo.
- Você nunca
escutou ninguém tocar piano? – arrisquei.
- Oh! Claro que
não. Nunca, nunquinha. Eu juro. Mas eu acho que deve ser uma coisa absurdamente
bonita.
- É sim. – tive
que concordar.
- Você não me
disse se conhece alguém que toca. Acho que estou viciada, se é que me entende.
- Entendo sim.
Vai haver um concerto daqui a dois meses. Deixa seu telefone, te separo um
convite.
Ela bateu as
mãos e os pés em ritmo frenético, ficou entusiasmada com a ideia.
- Você é mesmo
um amorzinho. – me abraçou e estalou um beijo na minha bochecha. – Brigada, tá?
Brigadíssima.
- Ok, tudo bem.
– disse e fui dormir. Mulher louca. Parecia desenho do Sérgio, criação de uma
mente perturbada.
Lá do quarto,
continuei ouvindo ela insistir nas zebrinhas. O som era mesmo de dar desgosto.
Mas era uma entusiasta e eu não tiraria o prazer dela.
Fato é que
Soraya, em seu desequilíbrio patente, escutava Chopin sem respirar, sem tirar
os olhos do pianista que se apresentava. Tive medo de que ela pulasse no palco
e beijasse o artista, assim como me beijou na noite em que nos conhecemos. Mas
ela não fez assim.
Ao final do
concerto, quando eu tentava sair sem que ela me notasse, escutei meu nome sendo
gritado a alguns metros atrás. Era ela. Foi se desvencilhando das pessoas, os
olhos eram cegos de tanta música. Ela estava em transe.
- Eu amei, cara.
Eu amei essa coisa toda. – e me beijou, agradecida.
Antes de ir
embora, ela segurou forte as minhas mãos. Percebi que tinha as unhas pintadas
de branco e preto. Ri como quem acha graça de uma piada. De uma forma ou outra,
ela carregava as teclas nos dedos. Não sabia tocar, mas queria. As coisinhas,
como ela mesma disse. Ou zebrinhas, pra quem preferir.
Repostagem: março/2010
2 comentários:
engraçado que eu senti que poderia, facilmente, ter me apaixonado pela tal de soraya.
aliás, com certeza eu teria me apaixonado, justamente por ela parecer um belo de um problema!
abraço!
Lindo, lindo.
Talvez algum dia minhas palavras encontrem as suas.
Beijos.
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