Ando muito ocupado ultimamente. Tenho me rendido ao barulho da chuva, ao cheiro do café feito no coador de pano (enquanto a água queima o açúcar no fogão), ao roçar do cobertor fino, aos sons dos carros que passam pela rua (indo pra algum lugar onde eu deveria estar), aos filmes de faroeste (aqueles que você mais odiava).
Outro dia tentei dedilhar aquela música no violão. Fiquei espantado ao perceber como hoje desconheço os acordes e me atrapalho com as cordas. Naqueles tempos, você me tapava os olhos e cantava perto do meu ouvido, enquanto meus dedos decoravam o caminho das notas. Suas notas. A madrugada vinha depressa e seu cachecol, sempre posto à mão, era esticado sobre os nossos pés gelados e nosso abraço era estanca para qualquer arrepio.
Eu parei de amar faz tempo. Não encontro mais jeito de inserir suas palavras no meu cotidiano. Houve um tempo - algum curto espaço de tempo - em que você se perdeu de mim. Nos distraímos. Nos atraímos. Um constante jogo de me-leva-e-me-deixa e nossos cadarços se desamarraram. Como quando naquele sábado em que você esperava que eu lhe trouxesse um buquê de flores. Eu esperava um abraço demorado. Não tivemos nem um nem outro. Onde nos perdemos?
Ao lado da minha casa tem uma senhora que conversa todos os dias com a filha ao telefone. Eu ouço porque ela se senta na varanda e tudo chega aos meus ouvidos pelas frestas indiscretas da minha janela. Penso que a mansidão daquela senhora é um amor de milênios. Será que ainda somos capazes de amar assim? De um jeito que o “pra sempre” pareça algo distraído? A conotação do amor hoje me lembra um bolo de aniversário. Muitos vão distribuindo suas fatias, até que restam as migalhas (que ninguém mais quer porque está farto). Você teve minhas melhores fatias.
Aluguei três DVDs pra assistir hoje. Te troquei pelos meus filmes favoritos. Amanhã eu acordo e tenho de lidar com a certeza de que preciso mesmo de pijamas novos. E de um amor que caiba dentro deles. Seus porta-retratos estão todos esquecidos no meu porão, caso você resolva tê-los de novo. Não sinto que são meus, mesmo tendo sido presentes seus. Se quiser, aceito de volta aquele relógio caro que te comprei. Ainda devo sete prestações. A bateria ainda funciona?
Me dói a conveniência dos relacionamentos. Me tortura essa insistência da saudade em apertar a campainha de casa, chamando para uma volta no quarteirão. Restam-me então a água quente do chuveiro e “Os miseráveis” na cabeceira da cama. Talvez você não saiba, (bem quero que desconfie) mas eu tenho uma carta na manga. Assim, entoarei Chico, com o dedo em riste: olhos nos olhos, quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais.
Despretensioso, volto meus olhos pra varanda. A chuva, o café, o cobertor, os carros, os filmes. Ando muito ocupado ultimamente. Amando tudo que não seja você.
18 comentários:
Gostei, achei carregado, uma parcela de rancor me veio no pensamento, a gente faz isso mesmo, não sei, talvez seja uma forma de provar que conseguimos viver sem aquela pessoa, e viver bem, ao menos parecer bem.
Amanhã eu acordo e tenho de lidar com a certeza de que preciso mesmo de pijamas novos. E de um amor que caiba dentro deles.
Esse trecho é oficialmente o meu primeiro trecho favorito de 2011.
Sinceridade a flor da pele...
Adorei!!!
Bjs
Devo confessar que tenho lido seu blog constantemente. Não comento sempre porque sou preguiçosa, às vezes. Mas, olha, sua escrita vicia, Filipe. É fascinante. E receber um comentário seu no meu blog é uma honra, sinto-me lisonjeada. Obrigada!
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Depois de ler, conclui: nem com a rispidez que sobrecarrega cada verso do texto você deixa de ser leve e doce. As palavras são suas amigas, Filipe. Deslizam. Parecem simples e fáceis. Dá até vontade de escrever igual, de tão bom que é.
Aliás, dor de amor dói - e não é pouco. Mas depois que passa, faz um bem danado, não faz? E a vida vai seguindo... enquanto as boas lembranças, a gente vai guardando.
Beijo!
PS: Chico Buarque é meu homem, rs. Não ouse me roubá-lo.
Lendo todos esses comentários acima, tentei pensar em algo a dizer. Tentei ler o comentário que você deixou no meu blog e assim tambem escrever algo tão próximo, para isso que você é quando escreve. Mas não sei falar. Li alguns dos outros textos e até reli. Só sei que também tenho me ocupado com a chuva, o cobertor, com uma saudade assimilada, entoada em musicas e musicas, mas agora também ocupo meus olhos aqui. E descanso.
Feliz ano novo!
É o desapego do desamor, a realidade que o sentimento não valorizado traz, ainda que demore.
Gostei muito do texto, está bem escrito, cheio de sentimentos e talvez verdades nas entrelinhas.
Tudo bacana por aqui, passarei sempre que possível.
Abraços!
Um dia, um adeus e uma carga de rancor não assumido embaixo dos braços. É isso que sobra quando as coisas terminam na hora errada? O amor é deslocado para outras coisas na expectativa de que dê certo. Nem sempre dá. Enfim.
Gostei do texto, Lipe.
E sobre teu comentário lá no Caixa Preta, talvez tenha sido o jeito do texto, não sei, mas amor para mim não é só querer o outro. Amor para mim vai além, muito além e beira o indescritível. Gostei da tua opinião lá.
beijo e feliz ano novo! =)
hahaha
Isso aí!
Bola pra frente,moço!
beijinho***
hahaha?
Eu, hein... cada uma!
Que o amor acabado sempre fica nos resquicios de nossos pénsamentos e ações.
belo texto.
A gente tem necessidade de dar amor a todo custo, né? Filmes, livros, folhas de caderno em branco pra rabiscar qualquer coisa que vire poesia.
Como diz o hermano, "alguma coisa a gente tem que amar".
Amemos, então.
Uma cronica, quase interpessoal
Passei aqui lendo. Vim lhe desejar um Tempo Agradável, Harmonioso e com Sabedoria. Nenhuma pessoa indicou-me ou chamou-me aqui. Gostei do que vi e li. Por isso, estou lhe convidando a visitar o meu blog. Muito Simplório por sinal. Mas, dinâmico e autêntico. E se possivel, seguirmos juntos por eles. Estarei lá, muito grato esperando por você. Se tiveres tuiter, e desejar, é só deixar que agente segue.
Um abraço e fique com DEUS.
http://josemariacostaescreveu.blogspot.com
Muito lindo e apesar disso real, é bem assim que a dor vai amenizando e outros amores surgindo.
Beijos.
Adorei seu texto mais uma vez.
Muito bom...
Este está entre os 100 melhores textos que já li.
Acho que os outros 99 também estão aqui no Mundo de Sofisma...
Abraço.
ha... [Não resisti].
Não disse? rs
Eu quero acreditar na coisa distraída, sabe.
Troco os filmes de faroeste pelos de comédia romântica. E só. O resto acho que andamos bem parecidos.
Existe um pouco de rancor nesse texto, sinto o interlocutor numca batalha para mostrar ao ex-amor que a vida vai muito bem sem ele, mas mesmo assim lá no fundo existe aquela dor, você citou Chico como uma pequena vingança, um último tiro no amor que se quer matar, mas amores morrem mesmo? Eu não acredito, paixões morrem, amores não.
Ótima prosa.
Ah! Felipe. Não consigo comentar sobre seu texto para não estragar. Comentarei sobre a tua escrita então. Já faz um tempão que acompanho seus textos. Quase o mesmo tempo em que eu sigo e acompanho o caixa preta da Lu. E sempre que aqui venho sou presenteado com um texto bem escrito e com idéias que transcorrem o comum. e são por vezes tão certas.
Meu abraço.
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