O ônibus estava quase cheio, quando entrei. Havia um único assento livre, ao lado de uma moça compenetrada em alguma leitura. Sentei. Tentei olhar discretamente pra ela, pra dizer qualquer coisa amistosa, mas ela não tirou os olhos da revista. Era uma revista daquelas de noiva, com vestidos de casamento dos mais variados. Ela olhava as gravuras como quem se derrete por uma casquinha de sorvete. Ela queria muito.
Coloquei meu fone e liguei o mp3. Fechei os olhos pra começar o longo trajeto até a minha casa. Alguns minutos depois, notei que a moça estava inquieta e abri os olhos. Ela chorava, discretamente. Mas o corpo todo se mexia, com os soluços. Tentei fingir que não via. Não queria me intrometer, pousar de conselheiro. Nunca obtive sucesso com essas coisas. Mas não pude ignorar a situação por muito tempo. Ela começou a choramingar alto, chamando a atenção daqueles que estavam por perto.
- Moça? – chamei, tirando o fone do ouvido.
Ela me olhou com uma firmeza assustadora, um par de olhos insistentes, invasivos, perdidos em meio a lágrimas que apontavam sentimentos muito confusos.
- Você está bem? Quer que eu aperte pra você descer?
- Não, obrigada. – ela parou um instante. Me encarou. – Como você sabe?
Balancei a cabeça, confuso. Ela percebeu que eu não havia entendido a pergunta.
- Como você entra nesse ônibus, senta ao meu lado, usando o mesmo perfume dele?
- Dele quem?
- Você pode esconder essa revista na sua pasta? Leve pra sua namorada.
- Eu não tenho namorada.
- Leve, apenas. Tem palavras cruzadas. – e ela me estendeu a revista de noiva, com a capa úmida das lágrimas que lhe caíram do rosto.
- Obrigado. – agradeci e guardei a revista.
- Eu o amo, sabe? De um jeito insano. Me faz mal.
- Sei como é. Já amei igual. Não é amor, isso. Amor não faz mal a ninguém.
- Ele me disse exatamente assim, com essas palavras. Você é uma espécie de bruxo?
- Não. – eu sorri, ante o espanto dela. – Já lhe ocorreu que, em todo lugar, as pessoas vivem coisas muito parecidas? Eu só usei as minhas palavras, que, coincidentemente, foram as dele.
- E como você deixou de amar? – ela interrogou, mostrando muito interesse na minha vida particular.
- Eu escrevia. Depois apagava tudo. Me expus ao máximo até me esvaziar dela.
- Eu não sei escrever. Só sei chorar.
- Também é uma forma de escrever.
- É? – ela perguntou, fascinada.
- Me parece que sim.
Ela apertou minha mão, me olhou fundo nos olhos, como se fosse me tragar. Me senti fumaça, desintegrei.
- Eu vou passar a escrever. Todos os dias. Me passa seu endereço, vou te mandar. Quero um leitor, alguém que acompanhe meu jornal diário.
Mulher louca, pensei. Tá achando que me interesso por cartas de amor mal resolvido? Tenho meus próprios romances. Inclusive, há dois meses tenho tentado concluir “Crime e castigo”. E agora essa história de jornal diário? Fiz cara de desentendido.
- Você se importa?
Quis dizer que sim, que me importava. Que se eu gostasse dessas coisas, teria feito psicologia, não direito. Que existem psicólogos aos montes, por conta de gente querendo esquecer um grande amor. Que eu tinha meus problemas pessoais. E não conseguia dar conta de um terço deles. Agora mais essa? Quis parar o ônibus ali mesmo e descer, inventando qualquer desculpa.
- Pode mandar pro meu e-mail. – eu disse e passei meu endereço eletrônico. Ficaria fácil sinalizar os e-mails dela como spam. Problema resolvido!
Ela agradeceu efusivamente e desceu no ponto seguinte. Ao vê-la desvencilhar-se de toda aquela gente do ônibus e me acenar, lá da porta, tive pena. Quis ajudar. Encontrei nela uma normalidade aparente; coisa que parecia não ter. Os olhos, porém, carregavam traços de loucura.
Ela nunca mandou um e-mail sequer. E eu aguardo até hoje, numa ansiedade que, por vezes, me irrita. Profundamente.