segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Em cima do muro


Em cima do muro, o moço equilibra seus dois pés. Os braços abertos no ar lembram aqueles aviões de brinquedo que nunca voam. O medo é visível nos olhos, nas pernas que tremem, no jeito que tenta tirar um pé e colocar o outro.


É que lá embaixo tem uma roseira. O medo é cair em cima dos espinhos. De altura nunca teve medo, sempre gostou de subir nas árvores mais altas pra se esconder da mãe que vivia com a correia na mão, pra lhe dar uns “coros”. Naquela hora ele ri, lembrando da mãe com a cinta numa mão, a outra mão na cintura, parada de frente pra árvore, olhando lá pra cima com os olhos de uma fúria sem fim. “Quando você descer, vai levar uma surra pra ninguém botar defeito”. Aí o menino passava o dia todo lá, até a mãe esquecer da surra, ou até o pai chegar em casa e defendê-lo.


Ele sempre achou que enfrentar o medo era uma forma de demonstrar amor. De forma inexplicável, o amor afasta o medo. É como se, em dois tempos, se ganhasse uma capa voadora e um poder intergaláctico destruidor. Porque, de fato, se preocupa não com o caminho, mas com o fim dele. O que tem do outro lado é suficiente para enfrentar qualquer roseira com espinho.


Em cima do muro, ele só consegue ver a luzinha acesa da casa dela. As cortinas estão fechadas, mas as sombras o deixam prever que, lá dentro, ela se penteia. Sorri ao lembrar que ela nunca mais prendeu os cabelos desde que ele, numa brincadeira, soltou suas presilhas e disse que a preferia assim: sem amarras. Naquele dia, ela sorriu de volta, encabulada.


Uma rajada de vento espalha o perfume das rosas, fazendo-o esquecer dos espinhos. Não há mais medo. Ele está pronto pra chegar na janela, surpreendê-la e arrancar-lhe um sorriso assustado. Pra ele, aquilo é amor.


Mais dois passos e já estaria lá. Pronto. Bate à janela. Alguns segundos até que ela afasta as cortinas. Ele aguarda ansioso, tentando se esconder debaixo do parapeito. Escuta o ranger das janelas se abrindo e aparece, querendo impressioná-la.


Pro seu azar, pro seu mais eterno azar, não é ela quem aparece. E sim a mãe, com rolinhos coloridos na cabeça e um semblante não muito amistoso. Ele despenca lá de cima, desacreditado. O susto maior é dele que jurava tê-la visto penteando os cabelos. Cai em cima das rosas espinhentas. O medo agora era dor, fincando sua pele. Tenta se erguer com dificuldade. Lá em cima, a janela é fechada e a luz apagada.


Flechado por um zilhão de espinhos, escala o muro novamente e pula para o lado da rua. Com a última esperança que lhe resta, lança os olhos para a janela. Está tudo escuro, mas consegue perceber a sombra dela, debruçada no parapeito, tentando alcançá-lo com seus sinais silenciosos. Ele havia percebido. Trocam um aceno e ela aponta pro braço dele, onde vê um espinho cravado. Cúmplices, sorriem da cena.


Por graça, ele abre os braços no ar e, equilibrando sobre o meio-fio, vai jogando um pé e depois o outro. Ela entende a farsa e aceita o gesto, encantada. Depois, fecha a janela e some no escuro do quarto.