terça-feira, 21 de abril de 2009

Do meu encontro com Dulce


Ninguém amou Dulce mais do que eu. E digo sem medo de estar errado. Apesar da legião de fãs que tinha, apesar dos assédios, eu tinha certeza. O que morava em mim não era desejo. Era amor, na sua forma mais piegas de ser.


Conheci Dulce embaixo de uma marquise, numa tarde chuvosa de fim de ano. Ela estava nervosa, comia as unhas numa avidez tresloucada. Ficamos ali parados, um ao lado do outro, esperando a chuva passar. E não passava. Eu lançava olhares furtivos pras pernas dela. Belas pernas, aliás. Mas a intenção era alcançar o rosto. Como se ela, inconscientemente, pudesse puxar minha íris pra cima. De repente, ela começou a assobiar uma música qualquer. Fiquei na dúvida se era Bee Gees ou Beatles. Era sua forma de distração. Pensei que poderíamos conversar, não sei. Qual assunto era bom pra conversar debaixo de uma marquise, com uma chuva torrencial despencando a poucos centímetros à frente?


- Moço, você não tem uma blusa qualquer nessa sua mochila?


Foi então que percebi que ela deveria estar sentindo frio. Meus olhos subiram, enfim, e viram dois ombros seminus, cobertos apenas por uma alcinha de dar dó. Compadeci. Respondi que não tinha, só tinha cadernos. Então, ela, de forma inusitada e distraída (uma distração de quem não percebe um cometa que passa em cima de sua cabeça) me pediu os cadernos. Eu, como que magnetizado, tirei os dois cadernos da mochila. Ela começou a arrancar as folhas, uma a uma, numa pressa afoita. Nesse momento, entre o arrancar de folhas, o mundo fez câmera lenta. E eu passeei em Dulce. Meus olhos, descontrolados, conheceram seus cabelos ruivos em cachos perfeitos. O pescoço era esquálido, mas atrativo por causa de uma tatuagem que impregnava a nuca. A face de Dulce era um misto de estresse e serenidade. Era como se ela inteira fosse uma cena bucólica, mas seu interior, seus cílios e sua boca fossem um congestionamento de trânsito infernal. Dulce era paradoxo. E linda, diga-se de passagem. Mas é dessas belezas raras, incomuns e, portanto, não-unânimes. Seria possível que quatro ou cinco a julgassem feia.


Depois de despetalar meus cadernos, Dulce cobriu os ombros. Percebi que ela havia arrancado as folhas usadas, com a matéria da aula anterior. Copiar tudo aquilo de novo me daria muito trabalho, pensei, mas não disse. Por fim, ela me encarou com gratidão e eu, bobo, só conseguia sorrir. Ela deve ter me achado bonito, ou charmoso. Porque não conseguia parar de me olhar. Fiquei pensando se era uma forma de agradecer pelas folhas, fazendo miragem de mim. Mas não sei. Talvez ela só estivesse com o olhar perdido, como ela mesma era.


Quando passou um táxi, ela gritou. Algumas folhas caíram no chão molhado e ela correu pra perto do veículo que atendera o seu chamado. Antes de entrar, ela me lançou um sorriso. Já estava encharcada. O cabelo inteiramente molhado, a blusa de alcinha grudada no corpo, deixando à mostra seios pequenos e pontudos que me afligiram. Havia papéis grudados nos ombros. Minhas letras se definhando na chuva, escorregando pra dentro dela. Quando ela entrou no táxi, deixei a marquise em reverência. Recebi a fúria da chuva na cabeça, no corpo. E corri. Corri atrás do táxi que já dobrava a esquina. Gritei alto, competindo com o barulho da chuva. O berro saiu rasgando a garganta, tamanho esforço. Sei que ela ouviu. Com o carro em movimento, ela abriu a janela e lançou uma bolinha de papel (do meu caderno). Tentei abrir, mas o papel, molhado, se desfazia em minhas mãos. Percebi um nome, Dulce, e um telefone que não consegui enxergar antes de o papel rasgar.


Depois disso, em nossos encontros esporádicos pelas avenidas, fizemos um acordo tácito de não reconhecermos um ao outro. Ela passava por mim sem muita trela. Eu desviava os olhos pra outra direção. Pelo mistério, amei Dulce. Mais do que qualquer um.



* Dulce é personagem da Jaya que peguei emprestado pra este conto.


sábado, 11 de abril de 2009

Sentimento convexo


Acordou com um sentimento estranho. Como se estivesse convexo. Apalpou o corpo. Tudo certo. Mas a estranheza continuava. Era como se ele fosse dois: parte externa e parte interna. Dentro, uma surpresinha, daquelas de montar. Fora, um grande chocolate temporário. Seria devorado em dois tempos.


Ao lado da cama, a esposa abria os olhos e suspirava numa vozinha melodiosa. Era sua manha. Queria alguma coisa, usava a voz fininha pra pedir. E soava como oração, tão bonita era. A afinação – sim, tinha uma certa afinação – lembrava Almir Sater quando cantava “Lá vai uma chalana, bem longe se vai...”. As palavras saíam como água e, logo, rio manso que pra longe levava a chalana. Havia sugerido a ela, certa vez, que fosse cantora. Que cantasse pelo mundo, coisa que gostava muito. Ela, medrosa, sorria tímida, disse que, quando Deus quer evidenciar o talento que dera a alguém, ELE mesmo dava um jeito.


Mas o fato é que ela abriu os olhos e também o enxergou convexo. E mais: viu um embrulho em volta e um laço amarrando em cima da cabeça. Perguntou, assombrada, o que era aquilo, se ele estava indo a alguma festa. Ele, inconformado, foi até o espelho. Aparentemente normal. A sensação era psíquica, anímica, espiritual, diria. Como faria pra se desvencilhar daquilo? Resolveu que ligaria para o irmão leitor voraz de Freud e Schopenhauer. O irmão atendeu ao telefone num tom de voz anormal. Perguntou se estava tudo bem. Sim, estava. O único problema era que se sentia convexo, côncavo, comestível. O irmão fez um silêncio irônico do outro lado. Na certa, encarava como uma piadinha, daquelas que sempre costumavam fazer um com outro. Mas, inesperadamente, em tom sério, disse que não poderia ajudar. E desligou o telefone.

Foi encontrar a esposa na cozinha. Tomava o chá fumegante com os olhos parados no canto do fogão. Sorvia o líquido, os olhos não piscavam. Ele pediu ajuda com certo desespero. Ela, sem tirar os olhos do lugar, aconselhou que procurasse um psiquiatra, um terapeuta, um pastor. Ele retrucou. Era domingo, ninguém realizava consultas no domingo. A mulher, por fim, deslizou o olhar pro marido. Encontrou-o abatido, um inconformismo estampado no rosto, algo meio alucinógeno lhe brotava nas raízes dos fios de cabelo. Estava estranho, verdade. Pegou-o pelas mãos e o deitou no sofá com carinho. Ele, involuntariamente, chorou. Feito bebê. Lágrimas vinham de todos os cantos. Dos rancores que tinha do pai, das mágoas da infância, do desprezo sofrido, da cobrança no trabalho, do abuso dos familiares, da rispidez das pessoas, da pobreza que acometia o mundo, do consumismo exacerbado, da ausência de Deus nos cantos, da falta de fé de muitos.


Desembrulhou-se. Certo alívio ia tomando conta do peito, da esposa, da casa. Lágrimas eram redenção. Encher-se delas era a certeza de que, um dia, vazariam por qualquer rachadura aparente. Entendeu-se e abraçou a esposa numa gratidão de corpo inteiro. Não havia feito nada, ela disse modesta. Tinha feito sim, ele sabia. Porque não era campo físico ou comportamental. Aquilo se tratava de algo que ela carregava dentro. Feito uma surpresinha. Daquelas de montar.